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Em 2015, o coração da Rua das Flores ganhou um novo ritmo com a abertura do Museu da Misericórdia do Porto. Mais que um espaço expositivo, o museu é a materialização de um projeto que nasceu no final do século XIX, quando o Conde de Samodães sonhava em celebrar a trajetória da Santa Casa da Misericórdia do Porto. Esse sonho foi concretizado pelo atual Provedor, Antonio Tavares, que transformou a velha casa de saúde em um dos pontos de referência cultural da cidade.

Da caridade à arte: um percurso de 518 anos

A Santa Casa da Misericórdia do Porto foi fundada em 1498 por Dom Manuel I e Dona Leonor, num momento em que as instituições de caridade começavam a ganhar forma em Portugal. Ao longo de mais de cinco séculos, a organização esteve à frente de hospitais, escolas, casas de caridade e programas de apoio social. O museu narra essa jornada, começando pelo terceiro piso, onde painéis explicam o papel social da entidade e apresentam retratos de benfeitores que, desde comerciantes brasileiros do século XIX até aristocratas locais, contribuíram para a expansão das obras.

No segundo andar, a visita se volta para a arte propriamente dita. Aqui, a coleção sacra reúne obras que datam do século XV ao XVII, reflexo do gosto e da riqueza acumulada pela instituição. Entre elas, destaca‑se a pintura flamenga renascentista "Fons Vitae", que retrata Dom Manuel I e sua família ao redor de uma fonte de sangue que emana da cruz. Essa peça não é apenas um espetáculo visual; ela simboliza a profunda religiosidade que motivou a caridade da época.

  • Esculturas em pedra e madeira do período barroco.
  • Conjuntos de ouro e prata que adornavam altares e procissões.
  • Vestimentas clericais ricamente bordadas, preservadas em excelentes condições.

Além das artes plásticas, o museu guarda um acervo médico surpreendente: instrumentos de laboratório, balões de coleta de sangue e até um aparelho de eletrochoque usado em tratamentos psiquiátricos. Esses objetos contam a história da missão hospitalar da Misericórdia e mostram como a instituição esteve à frente dos avanços da medicina ao longo dos séculos.

Arquitetura que dialoga entre passado e presente

O edifício original, o antigo Hospital da Misericórdia, serviu de sede da instituição de meados do século XVI até 2013. Ao longo dos anos, sofreu diversas intervenções, mas a última remodelação conseguiu unir o charme histórico com a funcionalidade de um museu contemporâneo. O ponto focal da construção é um átrio iluminado por um céu aberto que banha o interior com luz natural, criando um ambiente de contemplação.

Um dos espaços mais impressionantes é a Galeria dos Benfeitores, um exemplo claro da evolução arquitetônica portuense. A estrutura de ferro e vidro, típica do século XIX, reflete a aposta da cidade em materiais modernos sem perder a conexão com seu legado histórico. Essa união é ainda mais evidente na obra de arte contemporânea de Rui Chafes, "My Blood is Your Blood" (2015). A escultura de ferro serpenteia pelo interior e chega à fachada, simbolizando a continuidade do sangue que une passado e presente.

A igreja da Misericórdia, adjacente ao museu, é uma obra-prima do barroco italiano, remodelada no século XVIII por Nicolau Nasoni. O arquiteto, responsável por ícones como a Torre dos Clérigos, deixou sua marca em cada detalhe: das linhas elegantes das colunas até os azulejos azuis e brancos que decoram o interior. Esses azulejos são exemplares da cerâmica portuguesa, combinando arte e devoção.

O museu não se limita a exibir objetos; ele vive como um centro cultural dinâmico. A programação inclui peças teatrais, conferências acadêmicas, workshops de arte e até concertos de música sacra. Essa agenda reforça o compromisso da Misericórdia de continuar a servir a comunidade, agora por meio da difusão cultural.

Em 2016, o Museu da Misericórdia do Porto recebeu o título de melhor museu português, reconhecimento que consolidou sua reputação como destino cultural de excelência. O prêmio reconheceu não apenas a qualidade das coleções, mas também o sucesso na integração entre história, arte e engajamento social.

Os visitantes que percorem os salões saem com uma percepção mais ampla de como uma instituição de caridade pode moldar a identidade urbana. Eles observam, por meio de quadros, objetos médicos e arquitetura, que a solidariedade não é apenas um ato pontual, mas um processo contínuo que atravessa séculos e se adapta às necessidades de cada época.

O Museu da Misericórdia do Porto, portanto, funciona como um espelho da própria cidade: moderna e tradicional ao mesmo tempo, aberta ao futuro sem esquecer suas raízes. Cada obra, cada parede revestida de azulejo, cada relíquia médica conta uma história de cuidado, de arte e de compromisso com o próximo. Ao visitar o espaço, o público tem a chance de sentir o pulso histórico que ainda vibra nas ruas de Porto, reforçando a ideia de que o passado, quando bem preservado, pode inspirar as soluções de hoje.