Os baderneiros chegaram?
“O povo não sabe o poder que tem”. A estudante de Arquitetura comentava sobre o protesto contra o aumento no preço das passagens de ônibus com outro universitário, de História. Os dois dividiam o mesmo banco e acabaram de se conhecer. Eles dialogavam sobre a decisão do motorista da linha 7, comunicada aos passageiros um minuto antes. “Tem um protesto lá na frente. Vamos cortar caminho”.
Nenhum passageiro reclamou. Alguns entenderam que a manifestação os beneficiava. Outros preferiram o silêncio. O estudante de História falava com empolgação. “O Brasil finalmente acordou.”
Como sempre, desconfio de quem generaliza o mosaico em que vivemos. Os tantos Brasis são complementares e contraditórios. Desiguais e distantes. Também duvido de um povo que, eventualmente, retoma o estado de hibernação. Assistimos a muitos movimentos que se cansaram de lutar de maneira isolada ou foram absorvidos pelo poder. Santos, minha cidade e dois universitários, se especializou – por exemplo – em enterrar vozes dissonantes desde o final do século passado.
Uma hora antes de entrar naquele ônibus, li numa rede social o comentário de um jornalista que, quando estudante, batia no peito que era progressista, conectado em questões sociais. Pelo que escreveu, parece mastigar a própria soberba, temperada com preconceito. O colega dizia com alarde: “Os baderneiros chegaram em Santos. Caos na cidade!”
Independentemente do passado e dos bairristas do presente, precisamos aproveitar o instante. E uma parte da minha cidade o fez ontem à noite. Cerca de mil pessoas foram às ruas, no Gonzaga e na orla da praia para protestar contra o péssimo serviço de transporte coletivo na Baixada Santista. Não houve conflitos ou vandalismo, o que poderia calar – por um momento – os sussurros que teimam em realimentar o provincianismo inoculado por aqui.
Os manifestantes não deixaram que os partidos políticos, sempre de olho na causa alheia, levantassem suas bandeiras. A procissão era apartidária. Isso derruba o frágil argumento de que os protestos são políticos. Na verdade, o são, como qualquer ação coletiva. O que se confunde é política com política partidária, quase sempre de baixa qualidade e elevado oportunismo.
Infelizmente, sofremos de baixa capacidade de crítica cidadã. Pensamos como consumidores, encarcerados na nossa individualidade de shopping, que mede custos e benefícios por produtividade e dinheiro. Ser cidadão implica em pensar de forma coletiva para compreender as consequências das relações com e entre os diversos poderes. E aceitar os conflitos que nascerem destes relacionamentos.
Discordo do argumento de que quem não anda de ônibus é insensível ao problema. A insensibilidade não está em pegar ônibus. Reside no temor de perderem ou verem reduzidos os pequenos privilégios que se traduzem na segurança ilusória dos carros e outros veículos personalizados.
Qualquer sujeito deveria saber quanto custa o ônibus, quem detém o monopólio do transporte coletivo e as deficiências do serviço prestado. Como disse uma colega jornalista: “Não quero Internet nos ônibus. Quero qualidade e pontualidade.” Ela leva duas horas para sair de Praia Grande e chegar a Santos todas as manhãs.
Eu estava no ônibus da linha 7. Aplicaria prova e receberia trabalhos finais na universidade. Cheguei com meia hora de atraso. Honestamente, não me importei. Os alunos entenderiam. Quando virei no corredor que dá acesso à sala, eles já sabiam o motivo do atraso. Mais do que isso: conversavam sobre transporte coletivo, problema que afeta a todos, para dor dos que crucificam baderneiros.